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Um ateliê que respira (a despeito de tudo): entradas vivas e possíveis 

 

Por Laura Castro*

 







 

 

 

 

 




 

Reinaldo ECKENBERGER

1938 – 2018

 

Rua do Passo, nº 68, Carmo

Salvador-BA

CEP: 40301-408

CARTA.JPG

“Reviro na palma da mão o dado
Futuro, presente, passado
Tudo, sentir, total
É chave de ouro do meu jogo” 

Waly Salomão

 

 

 

Acordos para acordar o ateliê-arquivo de Eckenberger

 

Como pensar num texto que incorpore as múltiplas camadas de tempo de um ateliê? Suas inscrições mudas? Cada gesto, cada gesto interrompido e solto no ar? Pedaços de textos, recortes, coisas começadas, coisas inacabadas, artigos de 1.99, projetos poéticos, livros, cartazes, plantas tomando conta da varanda do ateliê de Reinaldo Eckenberger, artista argentino que viveu, criou e expôs grande parte da vida na Bahia. Um ateliê que guarda um bocado de tempo dos gestos do artista, ao mesmo tempo em que abriga um gesto inacabado, incompleto, perdido no tempo. Aberto, como uma fenda, como uma vulva, para tempos simultâneos, múltiplos, gozosos. Muitas entradas são possíveis nesse arquivo, nesse corpo fragmento, muitos mundos possíveis coexistem aqui. 

 

Me ponho a escrever sobre as entradas nesse arquivo, uma, duas delas, pois existem muitas. Cartografo aberturas possíveis. Foi assim que pensei um texto ao modo dessa “casa-ente” (HARDMAN, LANDINEZ, 2021): um texto como um ateliê abandonado, parado pela ausência, em vida verde, poeira, ácaros, seres visíveis e invisíveis, um ateliê parado, sem o movimento de seu artista. Nele giram todas as entidades da casa do Passo, as reocupações, o movimento vasto para além de uma pessoa individual. Na espiral: na encruzilhada: uma legião de seres, presenças e mistérios que ocupam tudo quanto é espaço. Lá não é diferente. 

 

O projeto “Onde está Eckenberger? Inventário de uma Vida”, gestado por Elena Landinez e Luisa Hardman, cria uma série de percursos inventivos por esse espaço-acervo, abrigados em uma plataforma digital que possibilita trânsitos nessa larga obra a partir, sobretudo, de seus processos. Se a potência de seu percurso criativo foi justamente “perseguir o rastro das coisas e transformá-las em mapas objetos de prazer”, como sugere Fonteles (1978), cá estamos justamente no entre-lugar dessa perseguição quando as coisas estão prestes a se transmutar, a virar outras.  Um ent(r)e-lugar vivo. A presença de Reinaldo Eckenberger habita aqui em suspenso como um valete de copas que me acompanha enquanto acordo e sou acordada. 

Podemos então fazer esse pacto? De que podemos habitar esse estado de inacabamento? Deixando quem lê à vontade para realizar outras fendas, cortes, frestas por onde olha o olho de quem observa esse ateliê-arquivo?  

 

Entrada 1

 

Vida:

Entrei no ateliê e tirei uma carta ao acaso no baralho de Eckenberger.

Como uma entrada, uma primeira entrada, tirar uma carta para escutar o espaço por outras bocas.  Como uma mandinga, como uma fabulação. Um valete de copas, figura masculina apaixonada, jovem, imatura, romântica.

Costuras, bonecas, serigrafias

Fantasias, sobreposições, hipóteses, estandartes

Faço um primeiro compilado de referências no papel:

Quase posso pensar em carnaval:

Quase posso fabular infinitamente narrativas a partir desse arquivo:

Esse chamado está ali, suspenso, no ateliê sem seu artista, no arquivo-ateliê re-povoado.

Aqui a noção de arquivo explode a ideia de classificação, de ordem. O corpo do arquivo é movido pelas mãos de uma artista, Elena Landinez, e essa ação descortina outras lógicas para os procedimentos dessa movida. Aqui os arquivos engendram enredos (PATO, 2013). Quase como se sua desordem fosse capaz de narrar. Quase como dar ouvidos à ordenamentos intuitivos, escolhas, modos de fazer, arrumações. 

Talvez como uma entrada possível na trajetória de um artista que pouco coube nas caixas das classificações? Que ao longo do tempo foi escapando às tentativas de categorização (CARAMEL, 2008)?

Elena Landinez re-coleciona e re-organiza as coisas em constelações. 


Listas infinitas, coleções de objetos, artesanias,

Amontoado de pedaços de porcelana, 

Camadas de tempo, de barras de saia, retalhos de tecidos, 

Coleções, restos, 

Rastros de rostos, de obras, de técnicas.  

Com sua presença, há uma co-criação em curso no corpo do ateliê, uma espécie de autoria operando nesse arquivo com a presença de uma nova artista, que sobrepõe um gesto.  Mover uma coisa de um lugar para o outro configura a produção de novas presenças, novos sentidos. Elena cria com esse gesto, quando ajunta objetos, refaz tramas, percursos, põe em jogo as vidas ali em relevo. 

Onde está Eckenberger? 

Onde ele está nas frestas? Nos gestos mudos? Nos objetos? No vasto mundo das coisas que dançam nesse espaço? Onde está?

Inventar um paradeiro. 

Inventar como quem inventaria 

Inventariar como invenção.

Inventário de uma vida, me diz Elena Landinez, quem me abre a porta.

Há uma espécie de gesto que habita, ao mesmo tempo, o legível e o ilegível. É nas frestas da presença-ausência do autor onde é possível criar outras leituras, outras escritas. Portanto, a autoria aqui é, antes de tudo, um gesto (AGAMBEN, 2007, p.55).

 

Ver, tocar, dançar com o processo, o processo inacabado parado no tempo do ateliê. 

Sigo tomando nota.

Como pensar com as sombras, os escuros, a ausência desse lugar? 

 

Percursos e presenças

 

Cartazes em POP-UP

 

Jogos de armar

 

Azulejos 

 

As cores, as paletas

 

Perna de boneca, garrafa de plástico, 

 

Grifos,

 

A biblioteca 

 

Os recortes de jornais, as revistas gay pornô.

 

Miudezas,

 

Barroquinha, Baixa dos Sapateiros. 

 

O que importa são as obras e não os processos?

Isso importa? – pergunta Landinez – Quem deve cuidar disso?

 

 

Entrada 2

 

A curadoria como um “trabalho experimental” exerce um papel de mediação, de construção de relações, de estabelecimento de sentidos e contextos articulados pela imaginação e a criação (FERREIRA, 2010, p.139). Seria possível que pensássemos aqui a partir da curadoria como uma palavra-chave que encantasse a abertura desse ateliê-arquivo?

Mas curar quais obras? Não há obras aqui. Onde estão as obras? Esta última pergunta seguiu sem resposta ecoando no trabalho das realizadoras deste projeto. Seria uma entrada possível SIM se levássemos a palavra ao pé da letra: cura-dor-i-a. Curar como quem cuida, como quem olha pôr, como quem dá atenção. Este projeto é formado por uma equipe de mulheres que, no inventariar esse ateliê-arquivo inventam percursos e se colocam como cuidadoras desse espaço, doadoras da vida pulsante desse inventário. 

Há algo, porém, que pode nos convocar a sair totalmente desse caminho de curadoria, nessa segunda entrada possível: o caráter não institucional dessa curadoria. Este projeto não se organiza a partir de uma instituição, embora receba um fomento público, não é enquadrado a partir das lentes institucionais e suas relações de poder. Ele é atravessado por uma curadoria afetiva, por um grupo de moradoras e ex-moradoras do Centro Antigo que se aglutinam pelo afeto. O ateliê é antes um espaço de afeto, de parentescos, de existência. 

Luísa Hardman é uma das gestoras deste projeto e uma pensadora dos coletivos e coletividades, interessada, sobretudo, nas tramas do comum e da arte como disparadora de processos que se imbricam na vida social (HARDMAN, 2019). 

Pensando na chave que abre essa segunda porta, uma espécie de curadoria afetiva, ao modo de uma curanderia guiada pelos afetos e perceptos desse grupo de mulheres, pergunto:

Como está aqui em relevo a possibilidade de potencializar o ateliê de Eckenberger, no sentido de convidar outros artistas a rearrumá-lo, a dançar esse arquivo, a cuidá-lo? E como ainda criar espaços dentro desse espaço para acolher não artistas em espaços de arte? Como acolher gentes, para seu corpo-casa, num momento de tantos desabrigos? Como gestar a vida num tempo de tantas mortes?

É impossível ignorar que o tempo que repousa sobre essas letras está atravessado por tantas ausências e presenças de uma crise civilizatória do Ocidente protagonizada por um vírus que tenta colapsar a vida como ela é. Estamos no meio de uma crise sanitária e quantos ateliês estão vazios, quando gestos inacabados, em suspensão, acompanham a vida de milhares de pessoas no planeta? Ponho adiante as perguntas feitas por Marisa Flórido Cesar: “como fazer com que a sombra que nos engole se converta em outros lampejos? Em outros porvires? Como produzir ou nomear um acontecimento que ainda não se sabe sequer o que é?” (CÉSAR, 2019, p.47). 

Referências

AGAMBEN, Giorgio. “O autor como gesto”. In: Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. 

CARAMEL, Lilian. “A vingança inventiva e Eckenberger”. Jornal A Tarde, Salvador: 2008. 

CÉSAR, Flórido. “Das bordas do mundo”. In: DUARTE, Luisa (ORG.). 21ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil: Comunidades Imaginadas: Leituras. São Paulo: Sesc: Associação Cultural Videobrasil, 2019. 

HARDMAN, Luísa. ATAR O NÓ(S): estudo sobre práticas artísticas contemporâneas e vida coletiva. Salvador:

POSCULTURA, 2019.

HARDMAN, Luísa. LANDINEZ, Elena. Projeto “Onde está Eckenberger? Inventário de uma vida”. Salvador: Fundação Gregório de Matos, 2021. 

FERREIRA, Glória. “Escolhas e experiências”. In: RAMOS, Alexandre Dias (ORG.). Sobre o ofício do curador. Porto Alegre:

Zouk, 2010. 

FONTELLES, Bené. ECKENBERGER. Salvador: Museu de Artes Moderna da Bahia – Solar do Unhão, 1978. 

PATO, Ana.  LITERATURA EXPANDIDA: arquivo e citação na obra de Dominique Gonzalez. São Paulo: Edições Sesc-SP/Associação Cultural Videobrasil, 2013. 

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A Mãe,

O grande OLHO.

 

O ateliê-arquivo,

A casa-ente.

 

Um gongo passou pelo chão de azulejo:

É o tempo

C  o .  e x i  s t  i  n d  o.

 

Há muitos tempos no ateliê 

e x i s t i n d o

Já longe do protagonista de sua existência,

De sua gira de movimento

Por onde passa toda e qualquer artista.

 

Um longe que é perto

É dentro, impregnado de presença

Quando nada separa os tempos todos paralelos

Qualquer coisa que permaneça ali, inscrita.

 

O lugar do tempo se abrindo como fenda, como vulva,

Quantos tempos têm esses ateliês 

Quantos tempos encarnam

Na maresia da Baía de Todos os Santos

Nos passos de tanta vida do Centro Antigo

Na vegetação que entra na varanda e toma o pórtico?

 

Não estaria seu protagonista

Amalgamado

Em cada rastro

Destruído, oxidado

refeito, re-vivo?

Não seriam suas criações

Inacabadas

A vida que ainda re-existe?

 

Germinações da realidade,

Sobre ver e ser vista por esse lugar.

 

 

 

* Laura Castro é artista da palavra e professora adjunta do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências – IHAC/UFBA.

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